Múltiplas personalidades, mentes fragmentadas

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transtorno de personalidades múltiplas

O transtorno dissociativo caracterizado por dois ou mais estados de personalidade que se alternam é popularmente conhecido como múltiplas personalidades.

Hedwig, uma criança de 9 anos; Dennis, um homem seguro de si, mas que sofre de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo); Barry, um estilista em crise existencial e Patricia, uma religiosa fervorosa. Ima-gine todos eles, de personalidades tão diferentes e potencialmente conflitantes, sendo obrigados a conviver? Essa relação tão instável ocorre no lugar mais perigoso possível: na mente de Kevin.

Kevin é o protagonista do drama “Fragmentado”,  filme dirigido por M. Night Shyamalan, que gerou grande repercussão pela intensidade da obra e pela atuação impecável realizada pelo ator escocês James McAvoy (“X-Men: Apocalipse”, “Victor Frankenstein”). McAvoy encarnou a pele de Kevin, um homem com 23 personalidades que precisa lidar com os problemas e crises que todos os seus outros eus geram.

“Ter de interpretar todos esses personagens, às vezes na mesma tomada, pode confundir os espectadores tanto quanto os atores interpretando os papéis porque foi insano fazer este filme”, explica McAvoy.

Personalidades múltiplas

Mas, afinal, é possível alguém possuir 23 personalidades? A resposta é: sim! Embora seja comumente conhecida como “múltiplas personalidades”, na psicologia esse distúrbio é chamado de transtorno dissociativo de identidade.

“É um tipo de transtorno dissociativo caracterizado por dois ou mais estados de personalidade (também chamados alter egos ou estados do eu ou identidades) que se alternam. O transtorno inclui incapacidade de recordar eventos diários, informações pessoais importantes e/ou eventos traumáticos ou estressantes, todo os quais tipicamente não seriam normalmente perdidos com o esquecimento normal”, define o Manual MSD.

Anteriormente chamado de transtorno de personalidades múltiplas, esse distúrbio é estudado há décadas, mas ainda existem inconsistências acerca de sua origem e atuação dentro da mente humana. Uma das causas mais relacionadas é a de trauma opressivo na infância. Kevin, personagem de “Fragmentado”, era abusado pela mãe durante a infância e carregou o trauma ao longo da vida.

“As crianças não nascem com um sentido de identidade unificada; ele se desenvolve de várias fontes e experiências. Em crianças oprimidas, muitas partes do que deveria ter sido integrado permanecem separadas. Abuso crônico e grave (físico, sexual ou emocional) e negligência durante a infância são quase sempre relatados e documentados em pacientes com transtorno dissociativo de identidade (nos EUA, Canadá e Europa cerca de 90% dos pacientes). Alguns pacientes não foram abusados, mas passaram por perda importante precoce (como a morte de um dos pais), doenças graves ou outros eventos estressores graves”, complementa o Manual MSD.

Embora seja um transtorno muito raro, pesquisadores afirmam que já houve relatos de casos em que um único paciente possuía 60 personalidades, tornando o roteiro de Shyamalan bem factível.

“Não é um transtorno comum. É um fenômeno que cria uma aura de mistério, sempre retratado na literatura e no cinema porque desperta o interesse”, descreve o psiquiatra Marcos Alexandre Gebara, diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em entrevista ao Huffpost Brasil.

O que é dissociação?

Os traumas atuam como o viés que conduz a mente a se fragmentar em mais de um alter (personalidade). A psiquiatria e a psicanálise explicam que o surgimento das múltiplas personalidades funciona como um mecanismo de defesa, a fim de escapar de uma situação de estresse ou trauma.

Assim, a personalidade do paciente se fragmenta, ou seja, sofre dissociação do unificado e forma um novo alter. Esse alter é moldado de acordo com a necessidade daquele indivíduo perante a situação atual de sofrimento ou estresse, como se fosse uma chavinha a ser acionada caso a personalidade original não conseguisse encarar determinada situação.

Por exemplo, Kevin era uma pessoa extremamente tímida e despertar a personalidade de Dennis, um homem confiante, forte e disciplinado, foi o meio que encontrou para lidar com as situações em que ser acanhado seria um problema ou que lhe faziam parecer fraco.

Dennis desenvolveu TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) por limpeza e, tal fato, pode ser explicado pelo episódio vivido na infância quando a mãe o espancou por ter bagunçado a casa.  A personalidade da recatada e religiosa Patricia também remete aos traumas sofridos, como os de abuso por parte da mãe e das experiências negativas na adolescência.

“O grau observável das diferentes identidades varia. Elas tendem a ser mais evidentes quando as pessoas estão sob estresse extremo. O que é conhecido por uma identidade pode ou não ser conhecido por outra; i.e., uma identidade pode ter amnésia para eventos vividos por outras identidades. Algumas identidades parecem conhecer e interagir com outras em um mundo interno complexo, e algumas identidades interagem mais do que outras”, aponta o Manual MSD.

Freud explica

O transtorno de múltipla personalidade teve um grande nome por trás das primeiras pesquisas acerca do tema.O ilustre psiquiatra Sigmund Freud, considerado pai da psicanálise, começou a estudar o distúrbio no século 19 ao observá-lo dentro dos processos dissociativos da histeria.

“Freud atendia pacientes histéricas e os sintomas mais comuns são os dissociativos, que podem afetar a memória e a paciente ter amnésia, assim como criar uma outra personalidade para lidar com diferentes situações. Naquela época (ele) já observava como a histeria tinha propensão de dividir a consciência”, explica o psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), em entrevista ao Huffpost Brasil.

Transtorno dissociativo de identidade: Sintomas

O Manual MSD, referência na área de medicina, listou alguns dos sintomas mais recorrentes desse  transtorno de identidade:

  • identidades múltiplas: Na forma de possessão, as identidades múltiplas são facilmente visíveis para os familiares e colaboradores. Pacientes falam e agem de uma forma obviamente diferente, como se outra pessoa ou ser assumisse.Na forma de não possessão, as diferentes identidades muitas vezes não são tão evidentes para os observadores. Em vez disso, pacientes experimentam sentimentos de despersonalização; i. e., eles se sentem irreais, removidos de seu próprio self e desconectados de seus processos físicos e mentais.

  • Amnésia
  • Lacunas na memória de eventos pessoais do passado (p. ex., períodos de tempo durante a infância ou adolescência, morte de um parente)

  • Lapsos na memória confiável (p. ex., o que aconteceu hoje, habilidades bem aprendidas, p. ex., usar computadores)

  • Descoberta da evidência das coisas que fizeram, mas de que não se lembram

A amnésia pode ser percebida por outras pessoas quando os pacientes não conseguem se lembrar de coisas que disseram e fizeram ou informações pessoais importantes, como o próprio nome.

  • ouvir vozes;
  • ter alucinações visuais, táteis, olfativas e gustativas;
  • depressão;
  • ansiedade;
  • abuso de drogas;
  • autolesão;
  • automutilação;
  • crises não epiléptica;
  • comportamento suicida;
  • disfunção sexual.

Tratamento da múltipla personalidade

A psicoterapia é o principal método de tratamento utilizado para os casos de TDI, pois os especialistas são capazes de identificar a origem do problema e os traumas que sucederam em cada personalidade, a fim de guiar o paciente à uma integração a longo prazo dos estados de identidade.

“A psicanálise tenta reconciliar a pessoa com seus conflitos, técnicas que possam fazer a integração dessas personagens. A pessoa precisa reconhecer que aquilo é reprodução dela”, explicou o psicanalista Christian Dunker à Huffpost.

O Manual MSD complementa: “A integração dos estados de identidade é o desfecho mais desejável para o tratamento do transtorno dissociativo de indentidade. As medicações são amplamente utilizadas para ajudar no manejo de sintomas de depressão, ansiedade, impulsividade e abuso de substâncias, mas não aliviam a dissociação propriamente dita; o tratamento para obter a integração centra-se na psicoterapia. Para pacientes que não podem ou não se esforçam pela integração, o tratamento visa facilitar a cooperação e a colaboração entre as identidades e reduzir os sintomas”.

 

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