A dupla personalidade, cujo nome científico é transtorno dissociativo de identidade, é real e deixa marcas profundas nos pacientes.

Dr. Jekyll é um renomado médico escocês que se dedica a pesquisas que visam compreender os impulsos e sentimentos humanos. Culto, inteligente e educado, o médico se aprofunda tanto em compreender o lado primitivo do homem que  acaba por despertar nele mesmo, a figura de um monstro.

Essa é a história do livro “O Médico e o Monstro”, escrito por Robert Louis Stevenson, lançado em 1886. Misturado aos elementos de ficção e de experimentos mal sucedidos, podemos tirar da obra um distúrbio psicológico um tanto raro, mas que mexe com o imaginário de muita gente: o transtorno dissociativo de identidade.

“É um tipo de transtorno dissociativo caracterizado por dois ou mais estados de personalidade (também chamados alter egos ou estados do eu ou identidades) que se alternam. O transtorno inclui incapacidade de recordar eventos diários, informações pessoais importantes e/ou eventos traumáticos ou estressantes, todo os quais tipicamente não seriam normalmente perdidos com o esquecimento normal”, define o Manual MSD.

Anteriormente chamado de transtorno de personalidades múltiplas, esse distúrbio é estudado há décadas, mas ainda existem inconsistências acerca de sua origem e atuação dentro da mente humana. Uma das causas mais relacionadas é a de trauma opressivo na infância. Para exemplificar esse ponto, vamos relembrar de outro clássico da literatura, “Psicose”, escrito por Robert Bloch, e adaptado para as telonas pelo mestre do terror, Hitchcock.

O personagem principal da trama “Psicose” é Norman Bates, um homem de meia-idade que possui uma relação um tanto estranha com a mãe, Norma. Sabemos que o ciúme, possessividade e abuso psicológico eram comuns na infância de Norman, mas o que descobrimos só no final do livro, é que o homem encarna a personalidade da própria mãe, já morta. Ele usa suas roupas e se comporta como ela, já que essa segunda personalidade dele saberia lidar melhor com algumas situações.

“As crianças não nascem com um sentido de identidade unificada; ele se desenvolve de várias fontes e experiências. Em crianças oprimidas, muitas partes do que deveria ter sido integrado permanecem separadas. Abuso crônico e grave (físico, sexual ou emocional) e negligência durante a infância são quase sempre relatados e documentados em pacientes com transtorno dissociativo de identidade (nos EUA, Canadá e Europa cerca de 90% dos pacientes). Alguns pacientes não foram abusados, mas passaram por perda importante precoce (como a morte de um dos pais), doenças graves ou outros eventos estressores graves”, complementa o Manual MSD.

O que é dissociação?

Os traumas atuam como o viés que conduz a mente a se fragmentar em mais de um alter (personalidade). A psiquiatria e a psicanálise explicam que o surgimento das múltiplas personalidades funciona como um mecanismo de defesa, a fim de escapar de uma situação de estresse ou trauma.

Assim, a personalidade do paciente se fragmenta, ou seja, sofre uma dissociação do unificado e forma um novo alter. Esse alter é moldado de acordo com a necessidade daquele indivíduo perante a situação atual de sofrimento ou estresse, como se fosse uma chavinha a ser acionada caso a personalidade original não consiga encarar determinada situação.

Por exemplo, Norman sempre foi uma pessoa muito dependente da mãe, uma mulher forte, confiante e que não media esforços para conseguir o que queria. Norma criou sozinha o filho e construiu um hotel para que os dois pudessem gerenciar. A trama sobre o passado de Norman é retratada na série Bates Motel, e é lá que todo o trauma psicológico é criado. Quando Norman desperta a dupla personalidade da mãe, é justamente para suprir o seu lado acanhado, pois no que lhe faltava força e pulso firme, na mãe sobrava.

“O grau observável das diferentes identidades varia. Elas tendem a ser mais evidentes quando as pessoas estão sob estresse extremo. O que é conhecido por uma identidade pode ou não ser conhecido por outra; i.e., uma identidade pode ter amnésia para eventos vividos por outras identidades. Algumas identidades parecem conhecer e interagir com outras em um mundo interno complexo, e algumas identidades interagem mais do que outras”, aponta o Manual MSD.

Transtorno dissociativo de identidade: Sintomas

O Manual MSD, referência na área de medicina, listou alguns dos sintomas mais recorrentes desse  transtorno de identidade:

  • identidades múltiplas: Na forma de possessão, as identidades múltiplas são facilmente visíveis para os familiares e colaboradores. Pacientes falam e agem de uma forma obviamente diferente, como se outra pessoa ou ser assumisse.Na forma de não possessão, as diferentes identidades muitas vezes não são tão evidentes para os observadores. Em vez disso, pacientes experimentam sentimentos de despersonalização; i. e., eles se sentem irreais, removidos de seu próprio self e desconectados de seus processos físicos e mentais.

  • Amnésia
  • Lacunas na memória de eventos pessoais do passado (p. ex., períodos de tempo durante a infância ou adolescência, morte de um parente)

  • Lapsos na memória confiável (p. ex., o que aconteceu hoje, habilidades bem aprendidas, p. ex., usar computadores)

  • Descoberta da evidência das coisas que fizeram, mas de que não se lembram

A amnésia pode ser percebida por outras pessoas quando os pacientes não conseguem se lembrar de coisas que disseram e fizeram ou informações pessoais importantes, como o próprio nome.

Tratamentos para a dupla personalidade

A psicoterapia é o principal método de tratamento utilizado para os casos de TDI, pois os especialistas são capazes de identificar a origem do problema e os traumas que sucederam em cada personalidade, a fim de guiar o paciente à uma integração a longo prazo dos estados de identidade.

“A psicanálise tenta reconciliar a pessoa com seus conflitos, técnicas que possam fazer a integração dessas personagens. A pessoa precisa reconhecer que aquilo é reprodução dela”, explicou o psicanalista Christian Dunker à Huffpost.

O Manual MSD complementa: “A integração dos estados de identidade é o desfecho mais desejável para o tratamento do transtorno dissociativo de identidade. As medicações são amplamente utilizadas para ajudar no manejo de sintomas de depressão, ansiedade, impulsividade e abuso de substâncias, mas não aliviam a dissociação propriamente dita; o tratamento para obter a integração centra-se na psicoterapia. Para pacientes que não podem ou não se esforçam pela integração, o tratamento visa facilitar a cooperação e a colaboração entre as identidades e reduzir os sintomas”.

Lidar com uma personalidade já é difícil. Agora, imagine ter de conviver com outros alters dentro de você. Esses conflitos podem ser um fardo pesado demais para alguns pacientes, sem contar no preconceito que sofrem. Portanto, o encaminhamento para o especialista é o primeiro grande passo a ser dado para compreender e reunir os cacos quebrados de uma mente fragmentada.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.